Entre 1844 e 1846, o francês Alexandre Dumas publicou, através de folhetins, um de seus romances de maior sucesso, até hoje, entitulado O conde de Monte Cristo. Recebendo inúmeras adaptações ao longo das décadas, a história de vingança promovida pelo protagonista Edmond Dantès tornou-se muito popular por representar uma das forças mais genuínas do homem: a busca pela justiça. O público leitor, é claro, enfrenta as mais de mil páginas do calhamaço de Dumas pois não deseja ver Dantès vitorioso, mas como seu plano de vingança será meticulosamente traçado e executado.
Em O quarto de Jack (Room, 2015), quando Ma conta uma história de ninar a seu filho Jack, é justamente um dos momentos de maior tensão e aventura de O conde de Monte Cristo que ela escolhe. Ao lado dessa obra, o menino Jack lê, em dada cena do filme, o clássico de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas. As duas inserções no roteiro de Emma Donoghue, baseado em seu próprio romance homônimo, funcionam como metáforas inteligentes para a história da mãe confinada em um pequeno quarto, obrigada a ensinar ao filho de 5 anos que aquele único cômodo é todo o seu mundo – e o mistério acerca dos motivos que levaram a protagonista ao quarto do título são mantidos, em boa parte da projeção, em segredo, uma escolha estética semelhante ao modo como Alexandre Dumas segura a atenção de seu leitor enquanto desenrola, em doses homeopáticas, o plano de vingança de seu protagonista Edmond.

Imagem: Universal Pictures, 2015
O desafio do diretor irlandês Lenny Abrahamson será, dessa forma, apresentar ao público um conflito que se desenvolve dentro de um ambiente pequeno e fechado. Não que isso não tenha sido realizado antes no cinema, a questão é que realizar um filme nesses moldes demanda pulso firme, além de atores extremamente competentes. Mas Abrahamson parece ter escolhido a dedo os responsáveis por dar vida a Ma e Jack. Enquanto Brie Larson confere nuances harmoniosas que vão do mais feio esgar de choro em momentos desesperadores ao sorriso sincero de uma mãe realizada ao ver a felicidade genuína do próprio filho, o menino prodígio Jacob Tremblay ganha todo o espaço da tela com sua brilhante atuação: entregue de corpo e alma a um papel complexo, repleto de camadas, Tremblay faz rir e emocionar um público que pode reprovar a qualquer momento seu trabalho no filme, já que atores mirins podem cair tão facilmente em uma atuação caricata, forçada. Não é o que ocorre, porém; o Jack de Jacob convence qualquer um de que é uma criança diferente em relação ao tipo de criação que foi obrigada a ter, mas completamente natural e comum no que se refere à visão que tem do mundo ao seu redor e à lógica peculiar que ele desenvolve por conhecer, desde seu nascimento, apenas o quarto onde mora. Room ainda conta com atores de peso em papéis coadjuvantes como Joan Allen, interpretando a mãe da protagonista, e William H. Macy, como seu pai.

Imagem: Universal Pictures, 2015
O trabalho de peso dos atores de nada adiantaria se o filme não fosse conduzido de forma segura e competente, mas o irlandês Abrahamson dirige O quarto de Jack com extremo cuidado: closes extremos nos poucos objetos presentes no quarto de Jack e sua mãe enquanto o menino narra, em off, suas impressões de mundo; tomadas mais demoradas enquanto a câmera focaliza os fios dos postes ou a cidade lá embaixo (todas através da visão de Jack); além de pontos de vista de dentro de lugares mais claustrofóbicos que o próprio quarto, levando o público para um aperto psicológico maior ainda.
Apesar de se render a clichês aqui e ali como a velha forma de incluir cenas em câmera lenta quando há um reencontro muito esperado na história ou introduzir uma trilha sonora repleta de cordas, bem cafona, nos ápices do roteiro, o filme relata sua história de maneira realista, sem, porém, chegar a chocar o público com uma possível crueza ou mostrar mais do que seria necessário. As explicações sobre o passado da protagonista, expondo o que houve para estarem ali, naquele momento, trancafiados em um único cômodo, são breves e metonímicas, não se deixando levar por uma verborragia que certamente prejudicaria tanto o ritmo do longa quanto sua poética.

Imagem: Universal Pictures, 2015
Não se deixando levar pelo melodrama barato, e mesclando doses de realismo com momentos doces, tocantes – como a cena do corte de cabelo, interrompida por uma única frase que vale o ingresso –, O quarto de Jack traz à tona, ainda, questões importantes como a maternidade e a exploração midiática, mesmo que esses temas sejam pincelados rapidamente dentro da história principal. O filme, principalmente, passa a mensagem de que é necessário buscar meios para uma fuga – eis aqui a metáfora de Monte Cristo – quando o quarto em torno de nós se fecha quase que por completo; e que viver em um mundo fantasioso, bem lá embaixo na toca do coelho – voilà Alice no país das maravilhas, pode ser benéfico até o momento da realidade deixar de existir de vez, e é aí em que o perigo de transpor a linha de um mundo a outro pode nos deixar presos à zona de conforto, aos cárceres que nós construímos para nós mesmos… a cama do quarto de onde não conseguimos levantar.
–

Pôster: InSync + BemisBalkind, 2015
Room, dirigido por: Lenny Abrahamson; escrito por: Emma Donoghue (baseado em sua obra O quarto de Jack)
Com: Brie Larson, Jacob Tremblay, Joan Allen, William H. Macy, Sean Bridgers, Tom McCamus.